4.5.09

Eu, Jornalista



Acordo com nova disposição, penteado novo. Jornalista Francisco, prazer, exercendo meu ofício com toda a assunção. Já começo até a receber cartas, vejam só. Um jornalista recebe muitas cartas. Transcreve as amáveis quando falta assunto e responde às odiosas com fina ironia. De qualquer modo, o jornalista sai-se sempre tão bacana que é comum duvidar-se da autenticidade de sua correspondência. Pois dou hoje minha entrada no rol dos suspeitos afirmando que desde a minha estréia neste pasquim, recebi um trecho de carta, dois pacotes de cigarros, um telefonema e uma dúzia de lingüiças. A carta partiu da Sra. Lúcia Reis, de Ipanema, flamenguista, casada com flamenguista, naturalmente. No gostou do meu primeiro artigo, isto é, não gostou da vitória do Fluminense. A Sra. Lúcia Reis, de Ipanema, informa que ser Flamengo é morar no Encantado. É tomar umas e outras, sentar na geral, participar do suor comum, coisas que também aprovo sem o menor pudor. Depois ela fala da coluna social, de impedimento, de Armandinho, e de outros argumentos que não entendi bem. Mas deixo de responder diretamente à Sra. Reis, em cuja caligrafia reconheço a inspiração do marido, para desfazer um equívoco maior. Duma vez por todas: sou Flamengo. Todo bom tricolor, a princípio, é rubro-negro. Porém, é um rubronegro tão curtido e fermentado pela vida que, um belo dia, pode chegar à mesa e declarar: "Irmãos, consegui! Finalmente torço pelo Fluminense." E os irmãos, pondo-se em fila indiana, inclinando-se e cumprimentando-o: "Parabéns, companheiro, você merecia."

Bem-vindos os vinte maços do meu cigarro enviados por João Manuel Fernandes, de São Paulo. Menos bem-vinda a notícia que os acompanha: a minha marca preferida está acabando. Parou no Rio, parou em Minas. Seu último reduto é a valente capital bandeirante que não pode parar. Aí fico meditando sobre a ingratidão humana. Porque, quando a gente adota um cigarro, presume estar fazendo uma opção para o resto da vida. Assim fiz eu aos 15 anos, com precoce determinação. Vieram os cigarros com filtro, não me alterei. Não me arrebataram os cigarros longos king size, marca de nobreza e distinção. Resisti até ao anúncio da moça loira, aquela da boca grande, disposta a qualquer aventura com o homem que fumasse mentolados. Veio o cigarro americano, a propaganda do câncer, veio o aumento, a tosse, e cá estou eu inexpugnável, dez anos de fidelidade, cinqüenta cigarros por dia. Façam as contas, senhores fabricantes, pensem no caso e tenham piedade de mim.

Tom Jobim telefona de Londres... Diz ele que Londres é bom, é civilizado, é civilizado mas é bom. Então ele mostra o bolero que compôs para o filme. O João Gilberto faz muito bem de estar lá no México, diz ele. O Vinícius voltou ao Brasil, né? É, o Vinícius é que está certo. O Caetano Veloso também. Aí ele manda eu esperar um pouco e fica aquela linha pendurada na Europa. A telefonista não gosta disso e começa a brigar comigo. Volta o Tom e diz que o Drummond é que tem razão: "O poeta é um ressentido, o mais são nuvens." O Caymmi também sabe o que diz. Quando o cobrador pergunta pelo último samba, o baiano responde que emburreceu, só isso. Em Londres ninguém cobra nada, tem aquela cerveja inteligente e aquela grama bem cortada. Em Londres só não come bem quem não conhece o Mercado e as sutilezas da língua. Tom, por exemplo, vai à compra toda manhã e ordena: "Dry meat and string beans", ou seja, carne seca e feijão de corda, que além de bom engorda.

Por falar em comida brasileira, e para terminar, quero agradecer à alma bondosa e anônima que deixou lingüiça na porta de casa. Era só o que faltava. Enfim tenho a matéria prima para organizar a maior feijoada de Roma, assim que as fraldas de minha filha desocuparem o caldeirão.

Chico Buarque
O Pasquim - agosto/69

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